2009-06-22

FOi no que DEU! 009



















Onde está o ceguinho?,
ou ahhh quanto tempo faz,… ou ainda: Um conto de uma cidade

por Fábio “Blablonski” Martins com ilustrações de Jorg Müller

Aquele era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos; aquela era a idade da sabedoria, era a idade da insensatez, era a época da crença, era a época da descrença, era a estação da Luz, a estação das Trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero; tínhamos tudo diante de nós, não tínhamos nada diante de nós, íamos todos direto ao Paraíso, íamos todos direto no sentido contrário… (Charles John Huffam Dickens, 1812-1870).

Seria Macondo? Antares? Sucupira…? Springfield, Pequenópolis, Patópolis,… ? Asa Branca?

Com certeza, aquela cidade não é Brasília. Não por questão de planejamento ou ausência dele… nem por ser um poço de virtudes… Bom, vamos falar da cidade em questão… Aquela ficticidade se chama Schilandenbergstalden. Ela está em algum lugar da Europa… Ali pelo meio e meio pra baixo. É daquelas cidades que já era velha há muito tempo. É respeitável. Tem história. Mais da metade dela foi abaixo na II Guerra Mundial… Boa parte da população saiu ou pensou em sair dali. Vai ver, parecia interessante se realocar, achar um lugar diferente e com nome mais fácil. Este nome rendia problemas para crianças em alfabetização, rendia problemas para viajantes perdidos, rendia problemas para moradores gagos (que chegaram a totalizar uns 15% da população antes da guerra - mencionar a forma como alguns deles morreram tentando avisar os demais sobre o ataque das tropas nazistas seria revirar uma piada pronta).

Com o fim da guerra, as coisas se acalmaram novamente. Até mesmo alguns novos habitantes vindos do leste da Alemanha ou de terras mais orientais se instalaram por ali. Não se sabe até hoje se faltou recursos para ir mais além e alcançar o Novo Mundo ou se apenas tinham medo de longas viagens sobre o mar. Alguns apenas davam de ombros e diziam “astrendouliktanpen”… numa tradução livre, seria algo como aquela idéia de fazer uma limonada com os limões que a vida nos oferece. Se tivessem atravessado o mar, aprenderiam a fazer caipirinhas...











Quarta-feira 06/05/1953

Em maio de 1953, a cidade já estava lá devidamente de pé. Quase se poderia dizer que não devendo nada a ninguém, mas esta já é uma outra longa história. Se Deus recomeçasse o mundo por Schilandenbergstalden, é bem possível que iniciasse os trabalhos numa quarta e não conseguisse descansar no sétimo dia. Naquela primavera, era possível ver aqueles belos prédios, as bicicletas e alguns automóveis. Era uma cidade ao mesmo tempo simples, próspera e pronta para ir adiante. A região como um todo se favoreceu do desenvolvimento industrial. Naquele tempo em que se amarrava cachorro com linguiça, tudo parecia mais divertido. Aquele cenário onde resistia um prédio com fachada germânica mais tradicional em meio a amplos prédios com mares de janelas hoje seria apontado como um lugar tranquilo… na época, era obviamente apenas normal. Ninguém percebia de fato a mudança de uma matriz econômica de uma base rural para um modelo industrial… Se esta mudança fosse uma manada de elefantes verdes, talvez,… quem sabe… algumas pessoas tivessem percebido e comentado na hora da janta. Intelectuais é que gostam mais disso…











Quinta-feira 16/08/1956

O tempo não pára… Em três anos, as árvores estavam mais robustas, havia mais carros pelas ruas, bicicletas já eram um pouco menos frequentes (pelo menos, na região central), alguns prédios mudaram de cor,… A vida seguia por ali. Havia mais pessoas morando por ali. Algumas eram pessoas vindas do meio rural e pouco acostumadas a algumas facilidades da cidade… Numa quinta-feira daquele agosto de 1956, uma certa jovem dona de casa distraída causou um pequeno e chamativo incêndio que serviu mais para aquecer os bate-papos da cidade e gerou algumas rodas bem divertidas até. Estranhamente, coisas assim geravam aglomerações e interação social,… Não se pode dizer que não foi um verão quente. A jovem dona de casa? Apenas se assustou… saiu do apartamento praticamente ilesa e logo após o fogo ser apagado, já estava rindo e assim permaneceu até a chegada de seu marido. As fofoqueiras da época disseram que as discussões entre o casal cessaram em mais ou menos duas semanas e uns dez meses depois nasceu o primogênito.











Sexta-feira 20/11/1959

Mais três anos e a cidade seguia sua marcha. E por falar em marcha, mais trânsito… mais carros… Aquele prédio de feições mais tradicionais seguia ali firme e forte e algumas vias antes destinadas a pedestres agora abriam mais possibilidades para os automóveis. As árvores pagaram o pato. Grande perigo era o aumento de veículos particulares e outros mobilizados para obras na cidade em meio àquele nevoeiro em novembro de 1959. Também havia o transporte coletivo sobre os trilhos e pelo tamanho da cidade e pouca urgência dos moradores, era até bem rápido. Algumas senhoras de mais idade se perguntavam “Onde é que este mundo vai parar?”. Que saudade dos bondinhos. A pressa para chegar em casa numa sexta-feira depois do trabalho com certeza poderia ter rendido o primeiro grande engavetamento de carros da cidade. Trágico? Talvez… Tudo que acontecia pela primeira vez naquela cidade tinha um gosto de descoberta… e viraria assunto nas rodas de populares.











Sábado 19/01/1963

O inverno de 1963 foi como quando uma lagarta se recolhe em um casulo para então virar aquela bela borboleta. Algumas obras mudavam a cara da via principal da cidade. Em dado momento, um prédio sumiu da vista dos moradores. Alguns se deram conta de que faltava algo ali, mas não lembravam claramente do que havia ali… Estavam tão acostumados a passar por ali e não reparar na paisagem… a não olhar pra cima e por vezes, nem para os lados,…uma pena… por falar em não olhar para os lados, no terceiro sábado do ano, dois carros se chocaram na avenida central. Não, não foi o primeiro acidente automobilístico da cidade. Este aconteceu em 1961 e em mais de quarenta anos, nunca foi plenamente compreendido. Aquele acidente de 1963 tem como marco a originalidade da desculpa esfarrapada de que a rua estava coberta de gelo e era sábado de manhã… também foi a primeira vez que se comentou largamente “quem manda passar a noite de sexta bebendo…”. Aquela transversal onde um dia houve uma praça com árvores já não era tão exuberante e parecia espremida em meio à transformação do espaço local. Imagine a novidade de se ter um trem andando no subterrâneo… foi muito mais divertido nos primeiros momentos que muitas montanhas russas em parques de diversão atuais. Não podemos dizer que era confortável, mas divertido com certeza. O jornal Diário de Schilandenbergstalden noticiou longamente as obras do novo meio de transporte e todos os mal-entendidos advindos de sua adoção.











Domingo 17/04/1966

Ah, aquela cidade ia se transformar em borboleta… com o passar do tempo, ela acumulou recursos financeiros que dali eram administrados… Era cada vez mais um ponto de convergência. Uma grande transversal viu agora sumir de fato suas árvores… na verdade, sobrou uma sobrevivente solitária sem razão de ser ou como ponto turístico. Naquela mesma via, um prédio desapareceu em favor do progresso. A cidade definitivamente dava mais lugar aos carros do que aos cidadãos (alguns demoraram demais para perceber isso). Um grande prédio tinha desaparecido, mas é como se uma cortina se abrisse e lá no fundo podia ser visto um grande grua que ensaiava a chegada do futuro e seus prédios mais altos e sofisticados. Em 1966, Schilandenbergstalden estava efervescente. Para ver a cidade calma, era preciso acordar cedo numa manhã de domingo para encontrar as ruas praticamente vazias. Foi isso que Gunnar Phildesgloken pensou. O infeliz foi capaz de aproveitar o dia 17 de abril para roubar os principais pontos de comércio da cidade. É fato que não existiam tantos pontos de comércio assim, mas foi uma grande sacada daquele larápio executar tal estratagema. Foi bastante elaborado para a época. Não o bastante também. Certamente, ele escolheu um momento favorável com poucas pessoas na cidade e já sem neve sobre a rua, mas esqueceu de pensar no tão necessário plano de fuga. Com tantas vias, a polícia conseguiu cercar Gunnar antes que ele pudesse pensar em sair da cidade. O assunto do grande roubo perdurou por meses. Alguns comentaram que Gunnar tinha um avô português e isso explicava parcialmente o seu insucesso. Teria sido muito mais grave se acontecesse anos depois com o comércio então de fato consolidado na cidade.











Segunda-feira 14/07/1969

A partir de 1966, as mudanças eram inegáveis e saltavam aos olhos. Não era à toa. Em 1969, a cidade já era bastante diferente… e este salto ocorreu em apenas três anos… O comércio e serviços abundavam e com eles, veio o maravilhoso mundo da propaganda com imensos cartazes, painéis, cores, amplas pinturas em laterais de prédios,… A região central favorecia cada vez mais os estabelecimentos comerciais e já não eram tão visíveis quanto antes as residências. A cidade também era mais alta agora. Podia crescer para cima e para baixo. Claro que prédios antigos estavam lá ainda. Um deles, aquele de feições germânicas, parecia fora de lugar… quem andou viajando e aproveitando os anos mais loucos até o momento com músicas, sexo e drogas, acha que aquele velho prédio apenas virou de lado. Alguns mais prudentes e sóbrios acham que ele foi reconstruído em novo ponto. Uma terceira categoria acha que ele foi apenas movido de forma cuidadosa e uma quarta parcela da população tem mais o que fazer e não fica pensando na morte da bezerra. Mais ainda, esta quarta parte do povo de Schilandenbergstalden nem enxerga este prédio porque na frente do mesmo está um novo parque de diversões… modesto, é verdade, mas ocupa as crianças e oferece alguns momentos felizes para muitas pessoas de diferentes formas. Numa segunda-feira dia 14 de julho, um usuário entusiasmado do parque de diversões não foi capaz de perceber uma grande obra na via principal da cidade e caiu naquele imenso buraco.











Terça-feira – 03/10/1972

Se muitos achavam que a cidade de Schilandenbergstalden mudava aos saltos, em 1972, tiveram certeza de que o céu era o limite ou nem ele. Prédios grandes, grandes janelas, grandes pilares… a cidade tinha mais níveis, mais caminhos, mais obras e um grande centro comercial. Parecia uma competição entre o crescimento da população e das construções. Em 3 de outubro daquele ano, uma multidão se colocou diante do centro comercial reclamando tanto do impacto deste sobre os pequenos estabelecimentos que desapareciam rapidamente no entorno e da ausência de verde naquela área central. Tudo confortavelmente pacificado pela polícia e convenientemente não noticiado na principal emissora de televisão de Schilandenbergstalden, conhecida como SBS (Schilandenbergstalden Broadcasting System). Aquele prédio antigo com arquitetura germânica? Estava ali. Por sinal, a manifestação foi bem diante dele até pra questionar os rumos do progresso, a especulação imobiliária, os valores e vantagens do passado e o preço do frango e ainda um possível escândalo envolvendo o prefeito reeleito e uma secretária gastando verba pública numa ilha em algum ponto da América Central.











Quarta-feira – 07/01/1976

Aquela manifestação de 1976 foi heróica,… mas não adiantou tanto. Em 1976, a cidade havia dado um novo salto. E a paisagem era toda outra. Uma via expressa cortava aquela tradicional avenida no centro da cidade. Dali, se via um grande conjunto de prédios modernos iluminados durante a noite. Praticamente não são vistas pessoas, mas grandes estruturas de cimento armado e carros cortando as ruas. Sim, Sim, Sim, aquele prédio antigo com feições germânicas segue lá e as crianças e até alguns adultos acham que ele é falso ou cenográfico… algo como uma lanchonete metida a besta ou algum elemento dentro de uma jogada de marketing para promover algum produto. Ah, com estas vias expressas, um larápio inspirado em uma figura histórica chamada Gunnar fez uma grande assalto dentro do centro comercial chamado shopping center e tentou fugir pela via expressa… foi noticiado pela SBS e foi assunto por alguns dias na cidade… Foi também motivo de grande diversão na penitenciária regional… diversão “relativamente” falando.

Se Milton Santos olhasse tudo isso, … não sei o que ele diria, mas a cidade se constitui no tempo,… é uma soma dos processos e funções… A cidade é um produto social… É decorrência de uma história e interação de fatores num todo. Uma acumulação. Elementos antigos persistem e se somam a novos. E a cada etapa, as funções se reorganizam, se ressignificam e se tornam rotina. A grande maioria não se dá conta de nada disso, apenas acha que os preços estão pela hora da morte e que estamos sempre na pior crise até aqui, enquanto alguns exploram a maior parte da população e muitas coisas e jogadas apenas encontram novas estruturas para fluir. Essa sociedade já vem nesse pique há mais de cinco mil anos ou mais e nunca há certeza do que vem aí… A velocidade é cada vez maior, as coisas são cada vez mais potentes e precisas e efêmeras…

Tomara que tudo isso dê certo. Só podemos trabalhar pelo melhor e torcer para que cada um faça sua parte.


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